O envelope


Dia de receber salário é especial, sagrado mesmo, na vida do trabalhador. Principalmente para uma professora, cujo mês de trabalho exigiu dedicação e sacrifícios que extrapolaram os limites da sala de aula e da escola, com a preparação e correção de trabalhos e provas. Não apenas por isso, mas também por que, para uma mulher que talvez contribua com a maior parte para as despesas da casa ou, quem sabe, seja sozinha para manter-se a si mesma e aos filhos, o salário represente uma necessidade ainda mais premente. E a espera ansiosa por esse dia escondido atrás dos outros no calendário acaba tornando mais longo e cansativo o mês.
Lá estava, na longa fila do Banco Regional de Brasília – BRB, no Setor Comercial Sul, num desses dias 30 de um mês qualquer de um ano já longínquo (talvez fosse 1970 ou 72, não importa), uma anônima professora para receber o pagamento que a Fundação Educacional depositara em sua conta. Que planos fazia, enquanto a fila se desfilava? Que compromissos haveria de saldar com o dinheiro que daí a pouco receberia? Talvez pagar o aluguel, a compra do supermercado? Será que se daria ao luxo de ir ao Conjunto Nacional, único shopping da cidade, para comprar um par de sapatos, um vestido novo? Quem sabe um presente para o filho, ou para o marido, ou para o namorado? Nada se sabe da personagem, se era casada ou solteira, separada ou viúva, se tinha filhos, se buscava amores. Sabe-se que era uma trabalhadora, uma trabalhadora especial, que ganhava a vida ensinando vidas, que para isso Deus fez as professoras. E que estava ali para colher o merecido fruto do seu labor.
Mas, já se disse, a fila andava lenta, como todas as filas de bancos. Aliás, a única coisa que parece resistir à pressa e à eficiência do mundo moderno são os serviços bancários. Mesmo com os aparatos eletrônicos de que são servidos, os caixas parecem dormitar, obrigando os clientes a seguir as procissões sonolentas ao encontro do santo padroeiro do sistema monetário. Vamos logo ao que interessa, senão o leitor sai da fila, digo do texto, e me deixa falando sozinho, por falta do principal.
A professora notou que estava sendo ostensivamente olhada por um rapaz que não demonstrava pressa nem ansiedade, mesmo porque não estava na fila. Era um sujeito bem apessoado, vestido com elegante simplicidade. Nada denunciava nele intenções suspeitas. Ela certamente era bonita e atraente e a situação sugeria mais uma paquera, naqueles idos relativamente pacíficos e inocentes, em que assaltos, sequestros, estupros, eram raros na ainda quase provinciana Brasília.
A lisonjeada professora, pois era assim que devia se sentir, alvo de atenção sedutora, chegou enfim ao caixa, sacou o dinheiro, que colocou num envelope e guardou na bolsa. No entanto, do encanto fez o espanto... e o engano. Logo que saiu do banco,  ela foi subitamente abordada pelo dito sujeito que, com cuidadosos disfarces, encostou-lhe uma arma e a conduziu para um carro estacionado bem próximo. Poucos minutos depois, já na Avenida W3, o maldito parou o carro e ordenou-lhe que colocasse o envelope sobre o painel. A amedrontada professora não hesitou em cumprir a ordem: enfiou a mão trêmula e apressada na bolsa e retirou, sem olhar, um envelope bem recheado. Liberada, saltou do carro e em desespero recorreu a um policial que surgiu feito um anjo fardado do fundo oco e azul  tarde:
- Fui assaltada, levaram todo o meu salário do mês – denunciava em prantos a infeliz professora. O soldado, ou anjo, antes de conduzi-la à delegacia mais próxima, para registrar queixa, achou conveniente verificar a bolsa. Pois lá estava o envelope com o dinheiro, endereçado à surpresa de ambos e ao final cômico-feliz desta história, que é pura realidade, segundo me contaram.
O assaltante é que deve ter tido uma lição inesperada e desconcertante, quando abriu o envelope deixado em seu (seu?) carro e encontrou ali (adivinhem o quê?) um envelope contendo um absorvente íntimo, o, então, conhecido por modess.

P.S. O policial dispensou as explicações, pois entendeu a situação da prevenida professora e o engano, desta vez, favorável a ela.

Manhã





Manhã,
palavra que acende os olhos
e ilumina os quartos. 

Manhã,
palavra que acorda os sapatos
e desata os passos.

Manhã,
palavra que abre a porta
para o tempo sair de casa.

Manhã,
palavra povoada de pássaros.