O menino ao longe

 

 


 

 

 

O menino

vem se insurgindo

no tempo.

 

É manhãzinha ainda

nos seus domínios.

 

Ele vem saindo

de dentro da paisagem

de neblinas.

 

O menino ao longe

vem vindo,  pequeno

em mim,

crescendo em si,

atravessando o tempo

montado num cavalinho de vento.

 

"As Parcas", poema do livro "Vento, Cavalo do Tempo", publicado no Correio Braziliense de 27/11/2020

 


Menino sem dono

 


 

 

 

Coberto de nuvens

dorme o menino,

 

esquecido do frio

e da fome

 

dorme

o bichinho sem dono.

 

 

Que sonho o afaga?

Que sonho o assombra?

 

O sono o afoga

num vago de sombras;

 

Que mão de fada

o salva:

a minha a-tua?

 

 

O sono

apaga nos olhos

 

                           o menino da rua.

Pai

 


         Ele cantou muito naquela manhã estiada de janeiro. Cantou umas músicas tristes e bonitas, que pareciam ecoar ao longe, lá do outro lado, nos confins azuis do dia. Tinha acabado de tirar o leite e soltado as vacas para o pasto. Arrumou ainda umas coisas no galpão ao lado do curral e tomou outras providências costumeiras na lida da fazenda. Sempre cantando: meu pai cantou muito, e assobiou também, como se soltasse uns pássaros de dentro do peito. Saiu cantando, com a enxada ao ombro, para lavrar seu último eito de terra e plantar as últimas sementes de suas mãos.

        Meu pai saiu de casa, assobiando, leve e ligeiro. Na saída, só beijou minha mãe no rosto, mas nem disse a ninguém o adeus. Atravessou os lisos limpos do terreiro e ganhou o caminho, sublime, firme, derradeiro. Meu pai ia, cantante, trabalhar no alto. Ia capinar a roça de milho, cuidar da vida, que a morte é certa, como era ele de dizer. Eu o vi, a última vez, sumindo distante, para logo se desavistar, sempre, nas leiras do milharal.

        Trouxeram-no da roça, os pés sujos de terra, as mãos duras e frias, a camisa ainda suada da lida, da vida. Os olhos, meio abertos, fitavam o longe, perto.

        Eu tive de descaber de mim a dor e desaguar meu choro, em prantos. Nos meus onze anos de idade, eu não conhecia de perto a morte, nunca tinha visto um humano abatido, inerte, com o olhar de vidro, feito estava ali meu pai, despossuído de si, desistido da vida, desexistido.  Então eu precisava de explicação, queria saber direito, naquela hora de olhar o semblante de meu pai em remanso, quem era eu, doído de tristeza, quem era Deus, Senhor de tudo, vida e morte. Eu queria saber o que Ele queria tomar de mim para si. Queria que não tivesse os tantos poderes, que mesmo se arrependesse de levar meu pai.

        Um galo pulou, naquela hora de meio-dia, no parapeito da janela, bateu as asas e cantou. Seu canto encheu os cantos escuros da casa de mais tristuras.

Nunca eu vi o mais triste de mim, desde aquele dia. Quando levaram meu pai para sepultar, morreu-me um feliz, menino. Encaixotei os brinquedos, fechei as porteiras da infância e carreguei as trancas na algibeira da camisa branca, para os dias de lembrança.

A fazenda do Estreito, onde colhíamos sustento e alegria não era nossa. Agora, sem nosso pai, o agregado, com seu braço forte, não servíamos mais ali, éramos de menor valia. Fomos dispensados.

Mudou-se a vida, mudamos nós, a órfã família. Fomos de mala e cuia para a cidade. Esta é uma história acontecida, mas sem fim, porque, de verdade, meu pai nunca morre em mim.

Passos


Ali vai o homem,
velhinho,
andando,
distante de si,

quase esquecido
de ser, de ter sido.

Mas segue adiante...

para onde, até quando?

Vai indo devagarinho

desaguar seus passos
no horizonte dos caminhos.

Pequenos eus


Somos feitos de pequenos eus,
cotidianos, implumes eus,
catando ciscos no chão das horas,
ou buscando lumes pelos ares afora.

Somos feitos de pequenos defeitos,
mas temos pó de estrelas
nas raízes dos cabelos
e os olhos confeitados de sonhos.

Pássaros






Desarvorado,
agora a-penas
                         s a l t i t a n d o
                         na gaiola

O pássaro
                    (desolado)

olha o lado alado
do outro pássaro
                               lá fora.

O pássaro
de dentro
                     canta

                  ou chora?





Alerta


Os galos,
é preciso alertá-los:

a fome dos homens,
seus donos,
qualquer dia, antes do almoço,
vai degolar seu canto
que escorrerá
                                 vermelho
de seu pescoço.



Cavalo Morto