O
menino
vem
se insurgindo
no
tempo.
É
manhãzinha ainda
nos
seus domínios.
Ele
vem saindo
de
dentro da paisagem
de
neblinas.
O
menino ao longe
vem
vindo, pequeno
em
mim,
crescendo
em si,
atravessando
o tempo
montado
num cavalinho de vento.
O
menino
vem
se insurgindo
no
tempo.
É
manhãzinha ainda
nos
seus domínios.
Ele
vem saindo
de
dentro da paisagem
de
neblinas.
O
menino ao longe
vem
vindo, pequeno
em
mim,
crescendo
em si,
atravessando
o tempo
montado
num cavalinho de vento.
Coberto de nuvens
dorme o menino,
esquecido do frio
e da fome
dorme
o bichinho sem dono.
Que sonho o afaga?
Que sonho o assombra?
O sono o afoga
num vago de sombras;
Que mão de fada
o salva:
a minha a-tua?
O sono
apaga nos olhos
o menino da rua.
Ele cantou muito
naquela manhã estiada de janeiro. Cantou umas músicas tristes e bonitas, que
pareciam ecoar ao longe, lá do outro lado, nos confins azuis do dia. Tinha
acabado de tirar o leite e soltado as vacas para o pasto. Arrumou ainda umas
coisas no galpão ao lado do curral e tomou outras providências costumeiras na
lida da fazenda. Sempre cantando: meu pai cantou muito, e assobiou também, como
se soltasse uns pássaros de dentro do peito. Saiu cantando, com a enxada ao
ombro, para lavrar seu último eito de terra e plantar as últimas sementes de
suas mãos.
Meu pai saiu de casa, assobiando, leve e
ligeiro. Na saída, só beijou minha mãe no rosto, mas nem disse a ninguém o adeus.
Atravessou os lisos limpos do terreiro e ganhou o caminho, sublime, firme,
derradeiro. Meu pai ia, cantante, trabalhar no alto. Ia capinar a roça de
milho, cuidar da vida, que a morte é certa, como era ele de dizer. Eu o vi, a
última vez, sumindo distante, para logo se desavistar, sempre, nas leiras do
milharal.
Trouxeram-no da roça, os pés sujos de
terra, as mãos duras e frias, a camisa ainda suada da lida, da vida. Os olhos,
meio abertos, fitavam o longe, perto.
Eu tive de descaber de mim a dor e desaguar
meu choro, em prantos. Nos meus onze anos de idade, eu não conhecia de perto a
morte, nunca tinha visto um humano abatido, inerte, com o olhar de vidro, feito
estava ali meu pai, despossuído de si, desistido da vida, desexistido. Então eu precisava de explicação, queria
saber direito, naquela hora de olhar o semblante de meu pai em remanso, quem
era eu, doído de tristeza, quem era Deus, Senhor de tudo, vida e morte. Eu
queria saber o que Ele queria tomar de mim para si. Queria que não tivesse os tantos
poderes, que mesmo se arrependesse de levar meu pai.
Um galo pulou, naquela hora de meio-dia,
no parapeito da janela, bateu as asas e cantou. Seu canto encheu os cantos
escuros da casa de mais tristuras.
Nunca eu vi o mais triste de mim, desde aquele dia. Quando levaram meu
pai para sepultar, morreu-me um feliz, menino. Encaixotei os brinquedos, fechei
as porteiras da infância e carreguei as trancas na algibeira da camisa branca,
para os dias de lembrança.
A fazenda do Estreito, onde colhíamos sustento e alegria não era nossa.
Agora, sem nosso pai, o agregado, com seu braço forte, não servíamos mais ali,
éramos de menor valia. Fomos dispensados.
Mudou-se a vida, mudamos nós, a órfã família. Fomos de mala e cuia para
a cidade. Esta é uma história acontecida, mas sem fim, porque, de verdade, meu
pai nunca morre em mim.