Corpo Nu à Beira-Mar Um belo livro de crônicas

                                             

 

A crônica literária nos proporciona, em geral, uma leitura agradável, prazerosa e, não raro, divertida. Elaborada quase sempre em prosa poética, com laivos de humor e ironia, esse tipo de texto curto e leve, sem artifícios estilísticos sofisticados, caiu no gosto dos leitores, mesmo os mais exigentes, e também atraiu grandes escritores brasileiros, que se tornaram, além de poetas, romancistas, contistas, excelentes cronistas. Além de Rubem Braga, expoente reconhecido do gênero, encontramos como autores consagrados de crônicas nomes como Paulo Mendes Campos, Otto Maria Capeaux, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, entre outros.

A professora e escritora mineira, de Patos de Minas, Elisa Guedes, lançou recentemente o livro Corpo Nu à Beira-Mar, um excelente exemplar de crônicas, no qual aborda diversos temas. Embora seja este o primeiro livro da autora, ele é fruto de uma maturidade cultural e literária extraordinária, do mais elevado nível de escrita criativa. Está subdividido em 5 partes, de acordo com os temas pelos quais a autora incursiona, a saber: “Coisas do Entardecer”, “Coisas da Política”, “Coisas da Arte – Cultura e suas Preferências Nacionais”, “Relacionamentos e suas coisas”, “Coisas Locais”.

Na primeira parte, “Coisas do Entardecer”, são enfocados os problemas e as vicissitudes, “as delícias e as amarguras” do envelhecimento. Com bom humor e sabedoria a autora narra fatos que ocorreram com ela e com outras pessoas de sua convivência e faz reflexões interessantes sobre o passar do tempo e a chegada da chamada terceira idade. Sem lamúrias, sem autopiedade, mas também sem um conformismo autoindulgente, ela vai tecendo suas considerações, de maneira sóbria e sábia, sobre a passagem do tempo e sobre que a vida traz aos que vivem seus setenta anos ou mais. E se ampara, às vezes, em citações, bem contextualizadas, de poetas e escritores, como Drummond e Guimarães Rosa, de filósofos, como Simone de Beauvoir, de pintores como Da Vinci e Munch, em músicos como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Nelson Cavaquinho, entre outros.  Vamos, com a leitura saborosa dessas crônicas, aprendendo a ver a vida com mais humor e aceitação do inevitável.

Mas não é só isso. Ainda nessa primeira parte, a autora enfoca um leque de variados temas e subtemas como educação, arte, cultura, relacionamentos familiares, amorosos e sociais, amizades. Enfim, com sua antena giratória de boa observadora da realidade, ela capta e filtra tudo que o mundo a sua volta lhe oferece para sua análise percuciente dos fatos e das circunstâncias. Como bem nota o prefaciador Luís André Nepomuceno, “(...) o livro de Elisa Guedes entrega uma diversidade de temas e sabores contemporâneos, num imenso todo de variedades, como se a consciência saísse por aí a vasculhar o mundo e suas complexidades”. O mesmo autor do prefácio já afirmara, linha antes: “São crônicas (...) que vão do texto literário breve (...), extraídas do cotidiano imediato até as reflexões mais penetrantes e fincadas no drama social e político do país”.

Na segunda parte, “Coisas da Política”, a autora expõe, de forma corajosa, sua visão crítica, às vezes impiedosa, mas sem arroubos discriminatórios ou deselegantes, contra as aberrações, a onda de ódio e a insanidades que assolou o país no passado recente, em que os adoradores de mitos manifestaram sua adesão a uma indecorosa maneira de conduzir a vida política do País. Não se trata aqui de proselitismo, de discurso partidário, mas de uma visão de mundo que não coaduna com a falsidade, com a hipocrisia pseudo-religiosa, com bravatas inconsequentes, mas sim com a busca da verdade e do bem comum, da justiça social, com a preservação da natureza e com valores humanos incontestáveis. Elisa tem lado e demonstra sem qualquer receio que lado é esse. Na crônica “Amigos que perdi, amigos que nunca foram”, ela declara: “O compromisso me é tão intrínseco que deixar de alertar e denunciar as necessidades sociais e as mazelas governamentais que impedem de combater as desigualdades é impensável. Meu jeito de estar no mundo não é a placidez serena de Monalisa, mas o desespero de O Grito. Nessas belas criações, Munch me representa, Da Vinci apenas me encanta”. Mas mesmo a revolta e a indignação da autora são contornadas pela lucidez e pelo bom senso. Enfim, essas crônicas são tão sinceras, com argumentos tão bem fundamentados e contundentes, e são tão bem escritas que ao final da leitura de muitas delas tive ímpeto de bater palmas, de pé, como fiz, juntamente com toda a plateia, quando acabei de assistir, no cinema, ao filme Ainda estou aqui.

Na terceira parte, ao enfocar questões relativas à educação, à arte e à cultura, a autora mostra seu conhecimento e seu domínio cultural nessas áreas. Sobre a educação, como professora que foi por muito tempo, ela expressa, com conhecimento de causa, sua visão crítica sobre as deficiências do sistema educacional brasileiro. Aqui seus textos se aproximam de artigos de opinião e a escritora faz comparações com outros sistemas internacionais e fundamenta seus argumentos com dados de organismos internacionais como a OCDE.

Na quarta parte, sob o subtítulo de “Relacionamentos e suas coisas”, a escritora compõe belos textos sobre a saudade, o perdão, a traição, entre outros temas, com a perspicácia de quem tem o que dizer e o faz bem dito. Aqui predomina o texto leve, com viés poético e, às vezes, irônico. E sempre com a classe e lucidez que lhe são peculiares.  Na Crônica “Um homem feminino, o que posso desejar a uma garota no dia da mulher”, ela traça o perfil do homem ideal para ser um bom marido e companheiro: um tipo afetuoso, colaborador, sensível, sem os estereótipos do machista, do mandão, do autoritário. E toma como exemplo o músico Caetano Veloso, em quem vê as qualidades desse tipo homem.

Corpo nu à beira-mar é um livro digno de prêmios, mas mesmo se não os alcançar, tem o mérito de enriquecer a literatura mineira, e mesmo a brasileira, uma vez que se equipara ao que de melhor já se publicou no gênero da crónica no País.  Tomara que conquiste um grande número de leitores, que poderão desfrutar do prazer da leitura. Além de informações e reflexões preciosas.

*Wilson Pereira é poeta, contista, cronista e autor de livros infanto-juvenis, com 20 livros publicados. Mantém o blog: wilsonpereirapoeta.blogspot.br

Cantiga

 Pelas estradas do passado

lá do interior de Minas

vem cantando um carro de bois

carregado de neblinas.