Trenzinho do Sonho




           Foi no barco do sono de onde eu pescava sozinho, nas águas clarinhas dum remanso de sonho, que desaguava no lago frio da meia manhã – que, de repente, um menino saltou de mim na minha frente e perguntou se eu o conhecia. Ora, pois, como haveria? Pois eu vou te mostrar quem sou, quem somos. Vem por mim, acompanha-me.

           Mas eu estava cego, precisava de guia?

           O pequeno tomou minha mão na sua e foi me levando para um ontem, um anteontem, um outro distante dia. E foi me mostrando uma paisagem que ia se desenrolando do futuro para o passado, reordenando os fatos nos fatos no presente, e tudo passava rapidamente visto da janela de um trenzinho de brinquedo, que ia disparado feito um calango com medo de gente.
          
Era um filme a que eu assistia de dentro do próprio filme, pois eu via o trem do tempo correndo ao mesmo tempo em que eu estava naquela viagem inventada, conduzida pela mão do menino. E passamos serras, montes, vales, horizontes, rios, riachos, pontes, postes, pastos, pássaros, boi-zinhos, bicas, sombras de pés-de-manga, e apitamos quando entramos no quintal da infância.
          
Nas cercanias, cavalinhos brancos, macios, de plumas, de neve, pastavam relva e orvalho e flutuavam em pequenos galopes, sob leves flocos de nuvens rosa desenhadas nos campos limpos da manhã.
           Os passarinhos debulhavam no ar a matinal cantoria dos quintais. Um ventinho manso e frio, vindo das bandas do rio, brincava solto nos galhos. O ar estava salpicado de folhas, flores, cheiros e notas musicais. Um aroma quente de café subia do mastro negro da chaminé. Só depois é que se enxerga a casinha branca que navega suspensa no silêncio da neblina.

           O sol, laranja madura dependurada no alto da serra.

  As lembranças melhores faziam ninho na memória. E às vezes soltavam suas imagenzinhas dentro dos olhos. Era preciso um tempinho para acostumar os olhos ao olhar. Tudo era limpo e claro na tela iluminada do sonho. Mas onde andava o menino que me trouxe para o tempo encantado? Havia fugido de mim ou em mim se refugiado?
          
Fui me aproximando da casinha caiada de brisa. Uma janela ainda bocejava.

       Ô de casa!

Ninguém responde. A porta está escorada. Era uma casa simples e bem-arrumada. Havia em tudo um brilho cheirando a branco, um asseio materno, desses que lavam e perpassam a alma das coisas.

         Onde estavam os convivas do meu sonho: o pai, sempre alegre, assobiante, estava no curral, ordenhando as vacas, ou teria ido campear além? A mãe, tão amável e bem disposta, fora à bica encher o pote de água nova? E os irmãos, tantos, foram para a escola? Ou ficaram crescidos e foram embora?

Por fim, num quarto pequeno, dorme só o menino. Ressona leve e sereno, em seu soninho quente, de palha.

O meu antigo menino, que me trouxe a mim, pequeno.

Cuidado para não acorda-lo. Ele pode não existir além do sonho.      

   (Conto retirado do livro Amor de Menino, Editora Dimensão, Belo Horizonte, 1997.)

0 comentários: