Pai

 


         Ele cantou muito naquela manhã estiada de janeiro. Cantou umas músicas tristes e bonitas, que pareciam ecoar ao longe, lá do outro lado, nos confins azuis do dia. Tinha acabado de tirar o leite e soltado as vacas para o pasto. Arrumou ainda umas coisas no galpão ao lado do curral e tomou outras providências costumeiras na lida da fazenda. Sempre cantando: meu pai cantou muito, e assobiou também, como se soltasse uns pássaros de dentro do peito. Saiu cantando, com a enxada ao ombro, para lavrar seu último eito de terra e plantar as últimas sementes de suas mãos.

        Meu pai saiu de casa, assobiando, leve e ligeiro. Na saída, só beijou minha mãe no rosto, mas nem disse a ninguém o adeus. Atravessou os lisos limpos do terreiro e ganhou o caminho, sublime, firme, derradeiro. Meu pai ia, cantante, trabalhar no alto. Ia capinar a roça de milho, cuidar da vida, que a morte é certa, como era ele de dizer. Eu o vi, a última vez, sumindo distante, para logo se desavistar, sempre, nas leiras do milharal.

        Trouxeram-no da roça, os pés sujos de terra, as mãos duras e frias, a camisa ainda suada da lida, da vida. Os olhos, meio abertos, fitavam o longe, perto.

        Eu tive de descaber de mim a dor e desaguar meu choro, em prantos. Nos meus onze anos de idade, eu não conhecia de perto a morte, nunca tinha visto um humano abatido, inerte, com o olhar de vidro, feito estava ali meu pai, despossuído de si, desistido da vida, desexistido.  Então eu precisava de explicação, queria saber direito, naquela hora de olhar o semblante de meu pai em remanso, quem era eu, doído de tristeza, quem era Deus, Senhor de tudo, vida e morte. Eu queria saber o que Ele queria tomar de mim para si. Queria que não tivesse os tantos poderes, que mesmo se arrependesse de levar meu pai.

        Um galo pulou, naquela hora de meio-dia, no parapeito da janela, bateu as asas e cantou. Seu canto encheu os cantos escuros da casa de mais tristuras.

Nunca eu vi o mais triste de mim, desde aquele dia. Quando levaram meu pai para sepultar, morreu-me um feliz, menino. Encaixotei os brinquedos, fechei as porteiras da infância e carreguei as trancas na algibeira da camisa branca, para os dias de lembrança.

A fazenda do Estreito, onde colhíamos sustento e alegria não era nossa. Agora, sem nosso pai, o agregado, com seu braço forte, não servíamos mais ali, éramos de menor valia. Fomos dispensados.

Mudou-se a vida, mudamos nós, a órfã família. Fomos de mala e cuia para a cidade. Esta é uma história acontecida, mas sem fim, porque, de verdade, meu pai nunca morre em mim.