Asas e Penas

 Poeta, 

por acaso,

Deus te deu asas

e penas?

Sim,

me deu poemas.

Eu tenho um sonho

 

Com Martim Luter King

eu repito:

I have a dream.

 

Sim,

eu tenho um sonho

um sonho enorme

de ver a harmonia

como norma tácita,

se fazer plena entre

todos os povos.

 

Um sonho de ver

apagar-se de vez

os espotins do ódio.

 

Um sonho de ver as armas

incineradas, derretidas...

as armas serem mortas

em favor da vida.

 

Um sonho de ver

as nações ricas

ajudando as nações pobres.

 

Como Martin Luter King

I have a dream:

 

o coração do homem

pulsando amor solidário,

a mão suave do homem

detendo a mão brava do crime,

de todos os crimes.

 

A mão plácida do homem

estendendo sua palma

com um Salmo

sobre o silêncio do mundo.

As abelhas e os rios

 

Os rios

e as abelhas

são as veias

e o sangue

da vida.

 

Matá-los

é genocídio:

 

a Ciência sabe disso,

 

mas o agronegócio,

com os agrotóxicos,

está fazendo o serviço.

Visita ao passado

 

Há coisas lindas

que já não nos pertencem,

a não ser pela poesia:

 

uma fazenda antiga

(hoje com a casa vazia)

 

e o desejo

de visitar o passado

que nela vivia.

O canto do galo

 

Canta o galo

e tanto canta

que o canto

                 lhe faz calo

na garganta.

 

Como se fosse pouco

                 o quanto cantara

mais canto exara

até ficar rouco.

 

Ainda assim não se cala:

tanto mais canta

quanto mais a noite se aclara.

 

E da garganta ferida

o canto agora

sai quente e doído

 e vai pingar uma gota de sangue

no poço frio da aurora.

Ovelha Negra

 

 

O poeta vai, aos poucos,

subindo o Monte Olimpo,

tangendo seu rebanho de poemas:

 

ovelhas de lã clara,

de hábitos macios,

de olhares líricos,

de ritmados passos,

de faro altivo.

 

No entanto

no meio do rebanho

segue a ovelha negra:

 

audaz e destemida

cabeça erguida

segura em seu livre arbítrio;

 

com seu irreverente balido

protesta contra injustiças,

preconceitos, violência,

contra corruptos e milícias,

contra falsidades e preguiça.

 

E por ser distinta e insurrecta

 

é a preferida do poeta.

Águas da Vida

 


 

 

A vida

são águas que fluem

da nascente à foz

de nós.

 

Águas

que vão crescendo,

encorpando

com as vidas afluentes.

 

Difícil, para alguns,

é  preservar as águas de si

sempre puras e transparentes,

sem contaminações influentes.

 

Com meu pai

de outro modo é que se deu:

ele correu suas águas riachinhas

limpas, boas de se beber, sempre.

 

Limpeza de se dar exemplo

(muito de mim, eu aprendi dele).

 

 

Naquele dia distante, assim é que pensei:

que meu pai não morreu!

 

Meu pai desaguou em Deus.

Resgate

 

Eu esqueci o menino

no sol, na chuva, no tempo,

ao desalento.

 

Agora, escrevi um poema

e trouxe o menino

para dentro

                            de mim.

Ciúme

 


 

O ciúme trai o amor

e atrai a intriga.

 

O ciúme,

sem fundamento,

se auto-sustenta

com a dúvida 

e o tormento.

 

O ciúme se inflama,

representa, improvisa.

 

O ciúme inventa brigas

(de) que o amor não precisa.

 

O ciúme faz cena, faz drama

e faz mal ao coração de quem ama.

S/T

 



Quem me dera

Subir pelo arco-íris

E semear chuvas coloridas

Nos campos da primavera.

 

Hora Clara

 

 

 

 

Poeta Thiago de Mello,

a minha palavra

junta-se à tua

na faina de anunciar:

 

 

se se faz escuro,

é hora de clarear.

 

 

A noite já vem longa

dos quartéis de assombro

pisando com seus coturnos

o sol dos homens.

 

 

Poetas soturnos,

operários da sombra,

apeai de vossos ontens:

 

 

incendiai a aurora

e enterrai o monstro!

Eu tebendigo, Neruda

 


 

Eu te bendigo, Neruda,

Por tua poesia

Sincera e aguda.

 

Te bendigo,

Poeta solidário

Com a vida do povo

Explorado e oprimido,

 

Te bendigo

Por tua poesia

Carregada de denúncia

Salgada de brisa e maresia,

Mas também incendiada

de esperança, de amor e alegria.

 

Te bendigo, sobretudo,

Por tua coragem e rebeldia,

Por tua conduta

De poeta de luta, com ideologia.

 

Te bendigo

Por tua crítica ácida

Aos poetas nefelibatas

Que negligenciam a luta

Pela liberdade e a justiça.

 

Eu te bendigo, Neruda,

Por nos ensinar

Que a poesia não deve

Ser omissa.

 

Te bendigo,

Poeta dos Andes,

Que sobrevoou,

Com asas e olhos de condor,

A América, com suas agruras...

 

E das alturas

Cantou a beleza de sua flora

E de sua fauna

E mais ainda:

Cantou o povo

E sua alma

Em teu Canto General,

Epopeia moderna e universal.

Mitos

 


 

Sísifo e Narciso

carrego pedras

para edificar

diante dos espelhos

meus próprios tombos

 

e não sei se porque quero

ou se porque preciso

 

levo para alto

um deus indeciso

 

nos machucados ombros.

O Amor

 


 

 

 

O amor,

de manhã cedo,

urina restos azedos

de sonhos e afagos.

 

 

Não basta

limpar os dentes

a gosma da língua

que o amor sempre míngua

suas sementes.

 

 

Não adianta

abrir as cortinas

para que entre o cio

de algum argumento

contra o amor morrente;

 

 

A alegria cria mofo

nos olhos de ontem,

mas o amor ascende

de suas próprias cinzas

de suas sobras e minas

úmidas e quentes.

 

 

O amor inclina o homem.

O Sal da Fome

 

 


 

 

O milagre dos pães

é remoto demais

para ser real:

 

sobre a mesa

o silêncio é farto

 

os olhos são fundos

os filhos são muitos

 

(o salário é mínimo!)

 

 

A fome

remove entranhas:

 

uma gota de sal

fere os olhos do pai.

 

O menino ao longe

 

 


 

 

 

O menino

vem se insurgindo

no tempo.

 

É manhãzinha ainda

nos seus domínios.

 

Ele vem saindo

de dentro da paisagem

de neblinas.

 

O menino ao longe

vem vindo,  pequeno

em mim,

crescendo em si,

atravessando o tempo

montado num cavalinho de vento.

 

"As Parcas", poema do livro "Vento, Cavalo do Tempo", publicado no Correio Braziliense de 27/11/2020

 


Menino sem dono

 


 

 

 

Coberto de nuvens

dorme o menino,

 

esquecido do frio

e da fome

 

dorme

o bichinho sem dono.

 

 

Que sonho o afaga?

Que sonho o assombra?

 

O sono o afoga

num vago de sombras;

 

Que mão de fada

o salva:

a minha a-tua?

 

 

O sono

apaga nos olhos

 

                           o menino da rua.

Pai

 


         Ele cantou muito naquela manhã estiada de janeiro. Cantou umas músicas tristes e bonitas, que pareciam ecoar ao longe, lá do outro lado, nos confins azuis do dia. Tinha acabado de tirar o leite e soltado as vacas para o pasto. Arrumou ainda umas coisas no galpão ao lado do curral e tomou outras providências costumeiras na lida da fazenda. Sempre cantando: meu pai cantou muito, e assobiou também, como se soltasse uns pássaros de dentro do peito. Saiu cantando, com a enxada ao ombro, para lavrar seu último eito de terra e plantar as últimas sementes de suas mãos.

        Meu pai saiu de casa, assobiando, leve e ligeiro. Na saída, só beijou minha mãe no rosto, mas nem disse a ninguém o adeus. Atravessou os lisos limpos do terreiro e ganhou o caminho, sublime, firme, derradeiro. Meu pai ia, cantante, trabalhar no alto. Ia capinar a roça de milho, cuidar da vida, que a morte é certa, como era ele de dizer. Eu o vi, a última vez, sumindo distante, para logo se desavistar, sempre, nas leiras do milharal.

        Trouxeram-no da roça, os pés sujos de terra, as mãos duras e frias, a camisa ainda suada da lida, da vida. Os olhos, meio abertos, fitavam o longe, perto.

        Eu tive de descaber de mim a dor e desaguar meu choro, em prantos. Nos meus onze anos de idade, eu não conhecia de perto a morte, nunca tinha visto um humano abatido, inerte, com o olhar de vidro, feito estava ali meu pai, despossuído de si, desistido da vida, desexistido.  Então eu precisava de explicação, queria saber direito, naquela hora de olhar o semblante de meu pai em remanso, quem era eu, doído de tristeza, quem era Deus, Senhor de tudo, vida e morte. Eu queria saber o que Ele queria tomar de mim para si. Queria que não tivesse os tantos poderes, que mesmo se arrependesse de levar meu pai.

        Um galo pulou, naquela hora de meio-dia, no parapeito da janela, bateu as asas e cantou. Seu canto encheu os cantos escuros da casa de mais tristuras.

Nunca eu vi o mais triste de mim, desde aquele dia. Quando levaram meu pai para sepultar, morreu-me um feliz, menino. Encaixotei os brinquedos, fechei as porteiras da infância e carreguei as trancas na algibeira da camisa branca, para os dias de lembrança.

A fazenda do Estreito, onde colhíamos sustento e alegria não era nossa. Agora, sem nosso pai, o agregado, com seu braço forte, não servíamos mais ali, éramos de menor valia. Fomos dispensados.

Mudou-se a vida, mudamos nós, a órfã família. Fomos de mala e cuia para a cidade. Esta é uma história acontecida, mas sem fim, porque, de verdade, meu pai nunca morre em mim.

Passos


Ali vai o homem,
velhinho,
andando,
distante de si,

quase esquecido
de ser, de ter sido.

Mas segue adiante...

para onde, até quando?

Vai indo devagarinho

desaguar seus passos
no horizonte dos caminhos.